O forte sismo que abalou as ilhas da Terceira, Graciosa e S. Jorge, afetou, profundamente, a cidade de Angra, cujo centro histórico ficou repleto de escombros. A tarefa de recuperação foi árdua, pelo que foi criado um Gabinete de Apoio à Reconstrução, “com larga capacidade executória e em coordenação com os serviços e entidades oficiais [governamentais e municipais]” (Maduro-Dias, 1996, p. 39), que deu apoio, forneceu materiais, coordenou as atividades e fiscalizou as obras. Por outro lado, a Direção-Geral do Planeamento Urbanístico efetuou um levantamento que veio a revelar-se fundamental, fachada a fachada, dentro dos limites do centro histórico, que, à data do sismo, se encontrava protegido por dois diplomas legais: o Decreto Legislativo Regional nº 20/1979/A, que definia as formas de proteção do Património Cultural na Região Autónoma, em especial o edificado e o Decreto legislativo nº 3/1980/A, que criou a Paisagem Protegida do Monte Brasil, incluindo toda a zona urbana do poente. Seguiram-se várias resoluções que incidiram na proteção do Património Arquitetónico, elaboradas pelo Governo Regional dos Açores que igualmente determinaria as normas a que deviam obedecer as obras de reconstrução (Maduro-Dias, 1996).
Assim, a resiliência e vontade das autoridades e populações fizeram reerguer este centro urbano, com respeito e fidelidade pela traça tradicional, o que, sem ser o motivo principal, concorreu para a integração do centro histórico — a designada Zona Classificada [Figura 1] — na Lista do Património Mundial da Unesco. Corria o ano de 1983, da catástrofe natural, a cidade reergueu-se e ficou no centro das atenções mundiais. Não obstante, o principal motivo que levou à sua classificação foi o lugar que esta ocupou no âmbito da expansão portuguesa e europeia no mundo e sobre as águas do Atlântico.
Planta de Angra do Heroísmo
Planta de Angra do Heroísmo
Unesco (s.d.). A zona central, classificada, delimitada a negro, está assinalada a rosa e a verde, a reserva paisagística.
Como refere Reis Leite (2014), esta cidade notável é “um elo na compreensão e interpretação da Expansão Europeia pelo mundo, na aproximação dos povos e culturas e na primeira globalização, ao ponto de ser classificada pela Unesco como Património da Humanidade” (p. 11). Dois critérios fundamentais sustentaram a classificação do centro histórico da cidade: o papel central do porto de Angra, como paragem obrigatória das frotas que regressavam de África e da Índia, que fizeram desta urbe um exemplo marcante de ponto de ligação marítima à escala mundial e na rede das grandes explorações ultramarinas; a associação da cidade a um acontecimento histórico universal de grande alcance e significado, isto é, a expansão oceânica que permitiu contactos e trocas entre as grandes civilizações mundiais. Deste modo, Angra do Heroísmo ficou equiparada à Torre de Belém e ao Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, e a Goa, na Índia, cujas igrejas e conventos são considerados igualmente Património Mundial da Unesco. De acordo com Francisco Maduro-Dias (1996), a votação favorável por parte do Comité do Património Mundial representou uma mudança significativa e relevante na aplicação dos critérios de classificação deste organismo, “onde até então a beleza e a arquitetura tinham imperado, o fator histórico aumentou de importância” (p. 41).
As primeiras cidades classificadas como Património da Humanidade foram Cracóvia e Quito, em 1978, mas por volta de 2010, já eram mais de uma centena. Entre elas encontramos ‘cidades mortas’, que são símbolos de antigas culturas, como é o caso de Pompeia, e cidades vivas. No geral, distribuem-se, preferencialmente, pela Europa e América, sendo que a Península Ibérica é uma das zonas do mundo onde mais cidades foram declaradas Património da Humanidade (Pérez, 2009).
No tocante a Portugal, a integridade e a autenticidade foram [e são] os selos de garantia para a definição da Zona Classificada de Angra do Heroísmo. Dentro dos limites de 212,40 hectares estão localizados todos os elementos necessários para expressar o “Valor Universal Excepcional da Zona Central da Cidade de Angra do Heroísmo, nos Açores, incluindo o sítio abrigado, o porto, o sistema defensivo de fortificações, o plano urbano, a arquitetura religiosa monumental e a arquitetura vernacular característica” (Unesco, s/d.). O facto de Angra do Heroísmo ter perdido, há mais de três séculos, o seu papel como encruzilhada marítima internacional afetou, em muitos aspectos, o seu desenvolvimento e expansão, mas por outro lado, permitiu preservar o seu plano urbanístico e o conjunto homogéneo de edifícios civis e religiosos, bem como as suas imponentes fortalezas que, num quadro de maior dinamismo e crescimento económico e urbano, poderiam ter sido perdidos irremediavelmente. Embora não exista atualmente nenhuma zona tampão, reconhece-se que a propriedade não tem sofrido efeitos adversos de desenvolvimento e/ou negligência (Unesco, s/d.).
A Zona Central da Cidade de Angra do Heroísmo, nos Açores, apesar do processo de reconstrução, mantém uma grande autenticidade, que vai desde a localização e configuração, às formas, desenhos e materiais utilizados. Foi substancialmente reparada e regenerada, conseguindo-se preservar a rede rodoviária dos séculos XV e XVI, bem como seus edifícios inventariados. A utilização de materiais e técnicas tradicionais de construção foi e é incentivada em projetos de reabilitação, sem prejuízo dos avanços tecnológicos. Naturalmente, existem ameaças e riscos, que estão identificados e que incluem as pressões do desenvolvimento, decorrentes da crescente densidade demográfica e possíveis desastres naturais, resultantes das condições geológicas e da própria morfologia da localização da cidade, simultaneamente vulcânica e tectónica.
Logo em 1984, para garantir a concretização dos objetivos da Unesco, foi promulgado o Decreto Legislativo Regional nº 15/1984/A [atualizado pelo Decreto nº 29/2004/A, de 21 de agosto] que classificou o centro histórico, maioritariamente privado, como Monumento Regional, criando um conjunto de regras que definiram a conservação e o futuro da designada zona central. Por este mesmo Decreto foi criado o Gabinete da Zona Classificada, que garantiu a vigilância e a cooperação da administração regional com a municipal (Maduro-Dias, 1996). Atualmente, a Zona Classificada é protegida pela Lei nº 107/2001, de 8 de setembro, que estabelece a base legal e o regime de protecção do património cultural.
Angra do Heroísmo recebeu também o estatuto de Monumento Nacional/Zona de Protecção Especial ao abrigo do Decreto Legislativo Regional nº 15/2004/A, de 6 de abril, que submete todos os instrumentos de planeamento ao Plano de Protecção e Valorização de Angra do Heroísmo. Através deste instrumento, cada edifício está sob a supervisão direta das respectivas autoridades quanto à sua preservação. Importa, pois, manter e aprimorar o Valor Universal Excepcional da propriedade, além de permitir que recursos contemporâneos sejam introduzidos na arquitetura do Angra de modo a que, cada geração, possa contribuir para o melhoramento e desenvolvimento de cidade (Unesco, s.d.)
As adulterações e incumprimentos podem levar a que qualquer bem seja excluído da lista da Unesco, embora as cidades declaradas possam pedir, a este organismo, assessoria técnica e ajudas para a formação de técnicos ou de carácter financeiro. Para que isto aconteça é necessário um parecer do Icomos e as ajudas materiais dependem do contributo do país para a própria Unesco. Alguns dos problemas fundamentais com os que estas cidades lidam são, em alguns casos, o excesso de dependência face ao turismo e, noutros, a conversão das mesmas em cidades-museu e centros unifuncionais. É preciso pensar que antes de serem cidades património da Humanidade são património dos seus residentes, e compatibilizar estes usos e perceções não é nada fácil (Pérez, 2009). No caso de Angra do Heroísmo, ainda que o turismo tenha vindo a registar um gradual aumento, até ao momento, não causa uma pressão excessiva sobre a cidade, que também não corresponde, propriamente, a uma cidade-museu. Importa manter um crescimento turístico sustentado, sendo que a maior pressão que se coloca sobre Angra é o perigo das catástrofes naturais, bem como o próprio desgaste proveniente das condições oceânicas. De resto, Angra apresenta-se - nas palavras de Maduro-Dias (1996) - como uma cidade da Época Moderna, “de aquém como de além-mar, onde se cruzam os caminhos do Atlântico, onde a simbiose do Velho com o Novo Mundo é particularmente sensível” (p. 42).