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João Gago da Câmara Escritor - Publicado na Revista Visão

Não seria bonito ver este belo Monte Brasil bálsamo de amores de princesas, príncipes, reis, fadas, magias e quebrantos? Como abrigaria ele, entre o seu denso arvoredo, paixões, amores, desamores, ciúmes, vinganças?
Sete horas em Angra do Heroísmo, na ilha açoriana da Terceira. A manhã acordou morna e seca. Enquanto o mar se carrega de tons de azul e cinza abaixo da vastidão do céu limpo, os jardins, generosos para nosso contentamento, deitam verde até junto ao passadiço marítimo que gostosamente percorremos. Na zona entre marés, maravilhamo-nos a olhar os rochedos porque são de um preto intenso e único, contrastando com a aguarela citadina que são as casas angrenses de um multicolorido antigo muito próprio que não choca. E se olharmos arriba, deparamos com o sempre surpreendente cone abatido do vulcão extinto, então brotado do mar, o imponente Monte Brasil que nos convida incessantemente a passeios no emaranhado de trilhos terreiros que cruzam o seu belo corpo vulcânico. E surge o sonho e a lenda. Não seria bonito ver este belo Monte Brasil bálsamo de amores de princesas, príncipes, reis, fadas, magias e quebrantos? Como abrigaria ele, entre o seu denso arvoredo, paixões, amores, desamores, ciúmes, vinganças?

Deus quis, o homem sonhou, a obra nasceu. Nasceu a bela lenda angrense, que perdura, da origem aos nossos dias.

O príncipe dos mares apaixonou-se por uma bela princesa de longos cabelos louros que vivia nas proximidades dos seus domínios marinhos, mas, para seu desgosto, o seu amor não era correspondido. Chegou tarde. A princesa já entregara incondicionalmente o seu coração a outro príncipe, um rapaz que amava. Face à situação, os ciúmes do senhor dos mares devastavam-lhe a vida e havia que reagir, nem que, se necessário fosse, tivesse que fazer uso da força. Desse por onde desse, a princesa terceirense teria forçosamente que ser sua. Daí resolveu chamar ao seu reino marinho uma fada e ordenou-lhe que invertesse o curso dos acontecimentos a seu favor, conseguindo-lhe o amor da princesa. A fada desdobrou-se em magias e quebrantos para que a bela moça abandonasse o seu amor maior e se entregasse nos braços do senhor dos mares, todavia todos os esforços foram infrutíferos – nada nem ninguém, nem a própria fada com os seus poderes mágicos conseguiu demover a princesa do seu profundo amor pelo jovem príncipe dos seus desejos.

Furibundo, o senhor dos mares, perante o imperdoável fracasso da fada, expulsou-a dos seus domínios. “Vai-te, maldita. Não confio mais nas tuas magias!” E a fada foi-se, dececionada e revoltada.

Um belo dia, o casal enamorado, que até então trocava apenas olhares enlevados e divagações, decidiu avançar para outros territórios do coração envolvendo-se num primeiro doce beijo. O beijo foi rápido, mas foi de imediato percecionado pelo senhor dos mares que acordou do seu leito de rocha de basalto negro e da açoriana areia vulcânica, onde dormia. A fada também o pressentiu e prontamente cruzou os céus voando rumo ao reino do senhor dos mares. Rejeitada pelo príncipe, por quem entretanto se havia apaixonado, ela própria quis reclamar vingança.

A maga foi encontrar o senhor dos mares enraivecido a atirar com as suas ondas gigantescas e a espuma branca contra a terra, chegou-se-lhe ao ouvido e disse-lhe: “Senhor dos mares é chegada a hora da vingança. Aqui estou às vossas ordens.” Inundado de ciúme e de ódio, o déspota ordenou-lhe: “Avançai, fada, eliminai o príncipe que ousou roubar-me a minha amada.” A fada não esperou. Deu a mão ao senhor dos mares e levou-o com ela para que assistisse à punição. Dirigiram-se ambos à praia (a conhecida “prainha” de Angra) onde se encontravam os enamorados, ela de cabelos dourados soltos ao vento, inclinada sobre o seu apaixonado que a mimava. A fada libertou a mão do senhor dos mares e atirou-se sobre os amantes lançando-lhes um feitiço que logo transformou o príncipe numa enorme montanha, o Monte Brasil, coberto de extenso arvoredo, hoje majestoso sobre o mar. Quanto à bela princesa, que rejeitou abandonar o amante, ficou para sempre na posição em que estava, arredondada sobre si própria, como a baía. Ela é hoje a bela cidade de Angra do Heroísmo, capital da ilha Terceira.

A ironia do destino manteve o par amoroso definitivamente ligado e as vagas lançadas de dia e de noite pelo atormentado senhor dos mares nada puderam contra o eterno enlace. Angra, a bela cidade património mundial da humanidade, e a altiva montanha geminada, o Monte Brasil, juntaram-se e vivem enlaçados para sempre.

O senhor dos mares, que ainda chora a perda preciosa no vai-e-vem da espuma branca da praia, aprendeu que a tirania e a prepotência nada podem contra a força de um amor intenso.

Deixo-vos hoje aqui esta que é considerada uma das mais belas lendas açorianas de sempre, a de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, cidade que foi por duas vezes capital do reino de Portugal, aquando da invasão espanhola e consequente domínio filipino, e ainda por ocasião das guerras entre absolutistas e liberais.

Visitar Angra e o Monte Brasil, nos Açores, é beijar a princesa e abraçar o príncipe.

 

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